Lisboa 2.0

 

Não há fome que não dê em fartura. Este ano — este mês, este dia — este blog oferece dois posts. Espantoso. É tempo de balanço.

Há um ano regressava a Lisboa e abraçava o meu ‘novo normal.’ Deixava um confortável e prestigiado ‘9 to 5’ para embarcar numa montanha-russa emocional que, como já sabia, me traria dissabores e desilusões, como também doses sobressalentes de excitação e ilusión.

A vida é mesmo assim. Feita de contrastes, esquizofrenia acelerada. E  apenas vale a pena quando se persegue algo maior — ou, como diria o poeta, quando a alma não é pequena. Apenas assim os obstáculos se tornam ínfimos e indiferentes. Até à frase liminar com que o arquitecto de Ayn Rand brinda o seu assanhado detractor em The Fountainhead: “But I don’t think of you.”

No Portugal obediente e servil que nos habituámos a conhecer, o parágrafo anterior  soaria arrogante e pretensioso.* De facto, por entre os resquícios de um país submetido a 40 anos de fascismo, este tipo de afirmações na primeira pessoa soa ainda indizível — “A lata!” — O despudor, mesmo.

Felizmente, agora estamos na Lisboa 2.0. Começamos a aprender que apenas não temos motivos de orgulho, como temos direito a estar orgulhosos. Começamos a perceber que temos direito a moldar uma cidade à nossa ambição e às nossas capacidades. E que, pequeno detalhe, temos Presidente de Câmara com ambição e capacidade a condizer.

Na Lisboa 2.0 começamos até a perceber que, na abertura de um museu, podemos também ter direito a um discurso prime time inaudito por um Presidente de República brilhante. (A eleição de outro português generoso para secretário-geral das Nações Unidas chegou no dia seguinte.)

Como aconteceu noutras paragens, pode acontecer que a economia da capital do país descole da economia do país — e que onde um perde população, a outra a recupera. O Porto 2.0 também lá está para provar que, como já se sabe, as cidades são o motor económico das regiões — mas também o podem ser para um país.

Claro que ainda há pontes por completar. Claro que ainda há situações ridículas em que compreendemos que as nossas ambições — “Vamos revitalizar a frente ribeirinha de Lisboa!!” — são limitadas por infra-estruturas inadequadas.

museudoscoches

Via jornal Público, sample de foto de Fábio Augusto.

Pode ser por real falta de fundos. Pode ser por galhardias partidárias que ainda nos fazem parecer atrasados mentais perante o mundo. Mas a verdade é que, como país pobre que somos, ainda temos muitos desafios pela frente.

Apesar de Portugal ser um país de pequena dimensão, e logo mais fácil de gerir, há dificuldades reais em ultrapassar atrasos estruturais. É difícil recuperar a distância quando os outros não param de correr. E é mais fácil aos outros continuarem à frente quando partiram com avanço considerável.  Mais irritante, porém, é que num país que não é mesmo para novos, permaneça a abundância de velhos do Restelo.

Estes são os que protestam contra o investimento em cultura por parte de uma empresa que foi privatizada pelo Estado — e que, portanto, a partir daí apenas deve contas aos seus accionistas. São os que ficam obcecados com os detalhes mal-acabados e passam ao lado do gesto maior. São os detractores profissionais a quem falta generosidade para exercer a crítica como um estímulo positivo.

Ainda assim, para todos aqueles que ainda não captaram bem o que está a acontecer, aqui ficam (quase) todas as minhas razões para ter deixado Nova Iorque e regressar a Lisboa. Até que, de novo, precise de mudar de ares.

O texto está todinho na UP, aquela revista inflight da TAP que tem um milhão de leitores por mês. Lisboa 2.0 já não é “um segredo bem guardado.”

 

– “Então, mas, conte-me lá… Porque decidiu regressar de Nova Iorque?”

A senhora sussurrava como se me conhecesse há décadas. O torso ligeiramente inclinado como que à espera de uma confidência, sorriso pícaro, o ponto alto da entrevista. As variantes desta cena repetiram-se ao longo de meses a partir do verão de 2015. A outra pergunta recorrente deixava-me mais inquieto:

– “Mas, então, explique-me lá… Quem é que deixa o MoMA para voltar a Lisboa…?”

Primeiro, tentei as respostas superficiais, nem por isso menos verdadeiras.

– “Ah! A qualidade de vida de Lisboa!”

Depois, entediado, ou apreensivo que alguém pudesse ler todas as minhas entrevistas, mudei de direção. As verdadeiras razões deviam ser caladas para sempre, até que mudasse de ideias. Assim, desenterrava coisas vagamente credíveis sobre o desejo improvável de regressar a Lisboa.

– “Sabe? Um dia via a CNN num quarto de hotel de Düsseldorf e ouvi: “Lisbon is now the coolest capital city in Europe!” Imediatamente pensei: “WTF??!! What am I doing here?”, percebe?”

Coisas do género. Cada escavadela uma minhoca. A ausência de humidade. O almoço na praia a 20 minutos de carro, de maio e outubro. A quantidade de major cities a duas horas de avião.

– “Pense em Nova Iorque… Certo? Nada de interessante a menos de cinco horas de voo.”

Pois. A Europa. A minha casa. O peixe grelhado, claro. O estado do mundo. A beleza inacreditável de Lisboa – quando tantas cidades perderam a graça. Farrapo a farrapo, lá se construía um repertório. Finalmente, vinha a resposta profissional, fácil, ou nem tanto:

– “Minha senhora, não é todos os dias que se recebe o desafio de lançar um novo museu.”

Não queria soar pedagógico, claro. Mas, ainda estrangeirado, lá tinha que explicar que isto, enfim, era once in a life time. Mais a mais, enumerava, se o museu tinha ambições internacionais. Se pretendia ser inovador, a intersetar arte contemporânea com arquitetura, cidade e tecnologia. Se significava uma chance ímpar de pôr artistas a refletir sobre o que está a mudar (n)as nossas vidas. Um projeto assim é único em qualquer sítio (acrescentava). Mais ainda em casa própria, onde nunca se é honrado como profeta (coibia-me de dizer). Dá trabalho. Mas compensa o não usufruir tanto da qualidade de vida para a qual, supostamente, se voltava.

pynchonpark

Via Instagram, foto de Pedro Gadanho.

A abertura do MAAT vai trazer um público diferente a Lisboa. Alguns deles, com quem me cruzava em Bienais e eventos internacionais, diziam-me que procuravam uma boa razão para vir à cidade pela primeira vez. Não se apercebiam que lhes ficava mal a confissão. Não percebiam que era como dizer que nunca tinham visitado Roma ou Paris. Ou Londres. Ou Istambul. Ou Nápoles. Lisboa já tinha tudo de irresistível. Há séculos. Mesmo assim, quisemos juntar-lhe água de beber, contemporaneidade, internacionalização. Agora, temos apenas que evitar que a cidade se torne demasiado atrativa demasiado depressa.

– Shhhhh!…

*Para aqueles que ainda não conhecem, no asterisco está a banda sonora do post.

4 responses to “Lisboa 2.0

  1. Como Portuguesa, como Arquitecta & Artista, como pessoa que acredita profundamente que a Cultura é a Fonte e a Essencia de uma sociedade, fico emocionada e Grata, pelo nascimento do MAAT, aqui em Lisboa, aqui em Portugal, só possivel pela existencia de Gente Maior.

    Belíssimo texto, pois, este de Pedro Gadanho (que não conheço pessoalmente, mas que admiro), que reflete uma Grande Atitude e um Grande Designio, o de ter aceite abraçar este Grande Desafio.
    Como Portuguesa, como Arquitecta & Artista, muito lhe agradeço!

  2. Pingback: No Country for Young People | shrapnel contemporary

  3. Pedro Pinto Correia

    Quando se cria um efeito, cria-se um inimigo. Isto não é só nosso, mas é muito nosso. Que não seja por isso que os efeitos deixem de aparecer.

  4. Pingback: On Fire | shrapnel contemporary

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