Correspondências

ConfidênciasPThis is the first text I’ve ever published on architecture.

It was back in 1994, in the Confidências para o Exílio art maganize, edited by Miguel von Hafe Pérez.

Before this piece of writing came out -basically re-enacting some ideas that had been put forward in my final architecture thesis-  I had only written on Wim Wenders and had made a couple of interviews for a a music newspaper, with… Nick Cave and Sonic Youth!

CORRESPONDÊNCIAS

A Natureza e um templo onde vivos pilares

Pronunciam por vezes palavras ambíguas;

0 homem passa por ela entre bosques de símbolos

Que o vão observando em íntimos olhares.

Em prolongados ecos, confusos, ao longe,

Numa só tenebrosa e profunda unidade,

Tão vasta como a noite e como a claridade,

Correspondem-se as cores, os aromas e os sons.

Charles Baudelaire, “Correspondências”[i]

Colhida no sistema filosófico de Swedenborg e, com mais frequência, na visão romântica de Charles Baudelaire, a noção das Correspondêmcias[ii] parece ultimamente reemergir, subliminar e pouco explicitada, nos mais diversos discursos culturais.

No território particular do discurso arquitectónico, esse que de Portugal parece estar irremediavelmente arredado, tal noção deveria cultivar-se e acarinhar-se como golpe de misericórdia daquilo a que Ortega y Gasset chamou a “barbárie do especialismo”.

Entendida como vontade de comunicação e fertilização cruzada entre formas diversas de cultura e conhecimento, a noção das Correspondências poderia reconfirmar ao discurso arquitectónico, como ao próprio “fazer” arquitectónico, potencialidades de incubação e desenvolvimento que, por antítese, não fariam senão tomar relevante o declínio que mais cedo ou mais tarde mina os discursos especializados, os saberes internos.

Numa época mediatizada, de grande velocidade de troca de informação, em que os discursos disciplinares herméticos se autocondenam a um papel ineficaz e incomunicante, sobressaem aqueles momentos da História nos quais se “atravessam as fronteiras e os limites das disciplinas”[iii] para obter significados outros.

Libertos de qualquer obsessão por uma tradição unívoca, por uma via exclusivista, poderíamos evoluir para uma espécie de novo eclectismo que se jogasse na abertura crítica do olhar, que se reafirmasse na transferência poética, pessoal, de ideias e imagens provenientes de outros territórios culturais para aquele das situações específicas da arquitectura.

Referimo-nos a uma interdisciplinaridade cultural que, efectivamente, enquadre a arquitectura no plano de “outras obsessões mais importantes que a própria arquitectura”[iv], e que, extremadas as posições, chegue a fazer com que a introdução varia de valores culturais de civilização e sensibilidade permita lançar novas coordenadas. Que suplantem essas outras coordenadas que perpetuaram as noções vigentes de arquitectura para a actual situação de crise.

O tipo de atitude radical resumido numa afirmação como a postulada pelo arquitecto Jean Nouvel de que “o futuro da arquitectura não é arquitectónico”[v] procura, apesar de tudo, mais concretamente, uma saída para essa crise de valores que equivale e sublinha qualquer crise económico-social que se possa fazer sentir.

A interdisciplinaridade que, assim, se quereria adivinhar não é aquela que aos anos se prega nas proximidades metodológicas de uma fé arreigada no saber interne; não é aquela, portanto, que nos sussurra nas contribuições mais processuais, e sem dúvida imprescindíveis, de uma engenharia, de uma geografia, de uma sociologia. E antes uma outra mais profundamente próxima as raízes conceptuais de cada forma de arte e conhecimento, por muito que aparentemente longe estas se encontrem do território, do futuro da arquitectura.

Uma saída, não através do abandono puro e simples do território da arquitectura e do saber que ai se vai saturando, mas sim regressando a tal território já recarregado dos estímulos, do tipo de energia que foi recoIher ao território mais vasto do pensamento, da reflexão e da emoção que se podem tornar partilháveis a todos os saberes.

De igual modo, uma saída, não pela subversão anárquica e fácil dos princípios mais básicos de um “fazer” arquitectónico, mas sim pela sua reconquista a partir de uma renovação da complexidade conceptual que esta no centro gravítico do próprio discurso criativo.

Em ambos os sentidos, é um questionamento profundo, de raiz, de voltar conscientemente ao início e “as coisas mais primitivas,”[vi] o que quer emergir aqui para nos devolver ao acto de significar. Entre ideia e forma, entre conceito e linguagem.

Não quereria afirmar com precisão ate que ponto esta estrada nos coloca perto de algumas correntes artísticas especificas, mas é efectivamente nos termos aproximados (e conscientemente pouco rigorosos) de um “neo-conceptualismo” que nos é possível intuir algumas pistas, alguns pressentimentos para a definição desta área movediça da exploração do “significado” e de novas modos de significar.

É em tais termos que nos poderemos permitir, como os arquitectos suíços Herzog & de Meuron, a “reivindicação da artisticidade como momento central da actividade projectual da arquitectura”[vii] ou, repescando uma fonte certa destes autores (e, desde logo, chocando menos certas sensibilidades), permitir-nos, pelo menos, a reivindicação Rossiana[viii] do direito aos usos de mutua contaminação, aquando da procura essencial da expressão.

Em Herzog & de Meuron, de facto, revela-se importante notar o empenho profundo dos autores no suporte e na “complexidade conceptual da obra”[ix] como saída possível para a crise da tradição.

A partir da experimentação da essencialidade da imagem e da reinvestigação cuidada do papel dos materiais, são realizadas operações conceptuais que, notavelmente, deslocam o centro da ideia de significado para territórios da arquitectura ainda pouco explorados. A própria flor da pele dos edifícios surgem, assim, surpresas tácteis e visuais que nos reconciliam com o potencial compositivo inovador das matérias mais correntes, mais supostamente inexpressivas.

E neste sentido, é justamente dentro de uma lógica de circulação de influências linguísticas e conceptuais entre os vários modos de “fazer”, artísticos e arquitectónicos, que não parece ser demais desejar que, por exemplo, regressem um dia à arquitectura mesma as contaminações arquitectónicas que descobrimos nos trabalhos recentes de Pedro Cabrita Reis em “Contra a claridade”. Também aí, afinal, se assiste a uma renovação semelhante do potencial expressivo desses “materiais correntes” banalizados e desprezados por um uso arquitectónico habitual.

A nível diverso, e dum contexto histórico radicalmente diferente, podemos recuperar, entre possíveis exemplos de referência para uma desejável incubação, o trabalho de Gordon Matta-Clark. Arquitecto americano “renegado” e inconformista, procedeu, no final dos anos 70, a cortes violentos e a autênticas desconstruções em edifícios prestes a ser demolidos, procurando com as suas intervenções dar visibilidade às camadas escondidas do tecido construído e torná-Ias, assim,”comunicantes.”[x]

Se a sua obra é antecipatória, por exemplo no âmbito do “site-specific”, ela revela-se para nós particularmente sugestiva e actual no confronto à revisão arquitectónica das sobreposições construtivas e a experiências recentes de evidenciação formal das estruturas, tal como as que, eventualmente, se poderão aguardar em obras por vir de Eduardo Souto Moura.[xi]

O que, sublinhe-se a evidência, assim se pretende invocar com a palavra “artisticidade”, não é tanto um qualquer exclusivo e ridículo estado-de-graça do estatuto criador, mas antes uma reaproximação a essa bela inquietação que liga o artista aos termos exactos de um mundo novo: essa “vigilância de desejo”, como lhe chama Barthes,[xii] que funciona sobre todas as coisas, com todas as formas de expressão, no intuito preciso de “não perder nada do seu tempo.”[xiii]

É, com efeito, essa força de uma contemporaneidade inegável que se poderia desejar compartilhar com artistas cuja obra se pressente imediata e arrebatadoramente actual: “nem ontem, nem amanha, mas só hoje poderia tomar aquela forma.”[xiv]

É nos sinais dos tempos, não esqueçamos, que uma certa voragem mais se alimenta para, no discurso individual, dar forma a essa aspiração colectiva de que falava Mies.

É nos sinais dos tempos, acentuemos, que encontramos porventura os estímulos mais carregados daquela informação inconsciente que nos permite intuir quais as vias a escolher, quais as pistas a tomar.

Assumindo-se como o decifrar desses sinais, “hieróglifos impressos na Natureza” e nas coisas, o processo das Correspondências vem sobrepor a esses sinais a necessidade de evidenciar, a cada novo momento, as analogias existentes entre as ideias nascidas nos mais diversos discursos.

O que se espera de tal processo não é senão a recuperação de uma grande vontade criativa de “dar expressão visível à realidade invisível”[xv]; não é senão a recuperação do interesse pelo próprio potencial interpretativo da arquitectura, intentando alargar esse “campo de probabilidades e definições cruzadas”[xvi] no qual se podem gerar novas sínteses arquitectónicas, novas formas de significar.

Nesse sentido, parece justo procurar as ideias mais profundas para a construção de um discurso radical no seio da tensão que se agita entre uma pluralidade de linguagens expressivas, e muito particularmente, entre aquelas ditas artísticas. Quer aprofundando os contactos que se estabelecem no território subconsciente das “origens comuns”[xvii] do acto criativo, quer tentando, a dada altura, reconstituir uma vivência, um olhar, um subtil drama, a emoção pura, a “experiência estética profunda.”[xviii]

O que, de algum modo, se sugere fundamental, é a reaproximação atenta do pensamento arquitectónico à produção artística contemporânea, superando muitas vezes um divórcio pedante e obtuso, de modo a reinstalar plenamente um meio de fermentação conceptual e uma renovação expressiva irrecusavelmente enriquecedoras. Um pouco mais além, portanto, do já sugerido na década de 50 pelo historiador e crítico Siegfried Giedion quando afirmava que “a identificação de arquitecto não pode ser conseguida sem se ter passado pelo buraco da agulha da arte moderna”.

Notas


[i] “Correspondências”, in “As Flores do Mal”, Charles Baudelaire, tradução portuguesa de Fernando Pinto do Amaral, Assírio e Alvim, Lisboa 1993.

[ii] “Correspondances (théorie des). Théorie suivant laquelle I’univers recèlle de multiples et mystérieuses analogies entre ses diverses élements et domaines. Professée par Swedenborg (1668-1772) cette théorie des affinités profondes des êtres et des choses àinspiré des nombreaux écrivains.”, in Dictionnaire des Litteratures, Larousse, Paris.

[iii] É Jacques Derrida quem coloca justamente um cerne da filosofia da Desconstrução nesta necessidade ou estratagema, que ele ilustra com a actividade de alguns arquitectos como Eisenman, Liebeskind ou Tschumi: “I was interested in the fact that this architects were in fact deconstructing the essentials of tradition (…) not in order to reconstitute some pure and original architecture – on the contrary just to put architecture in communication with other media, other arts, to contaminate architecture. (…)This crossing, this going through the boundaries of disciplines, is one of the main- not just stratagems but necessities of Deconstruction. (…) Most importantly they are moments of what we call History.”, in “Deconstruction II”, Academy Editions, Londres, 1989.

[iv] Fernando Távora em entrevista a revista “Unidade”, n° 3, Porto, 1992: “Uma das coisas que me impressiona em muita gente e em muitos arquitectos e a obsessão pela arquitectura. Eu tenho a impressão que a gente tem que ter outras obsess6es mais importantes que a arquitectura. Do ponto de vista social, técnico, cientifico, plástico, artístico, que enquadrem a arquitectura.”

[v] “EI futuro de la arquitectura no es arquitectónico. No es el nuestro saber interno el que resolverá la crisis de la arquitectura.”, Jean Nouvel, in AMC, n° 18, Paris, Dezembro 1987.

[vi] “L’architettura contemporanea dovette scegllere la strada piú difficile. Ai pari della pittura e della scultura, dovette cominciare da capo e riconquistare Ie cose piú primitive, come se niente fosse mal stato prima.”, Siegfried Giedion, in “Architecture you and me”, Harvard, 1958.

[vii] “Si en los años sesenta la discusión y la practica de la arquitectura se presentaron proximas al discurso sociológico y politico, si en los setenta la história fue punto de referéncia, los años ochenta han supuesto la reivindicación de la artisticidad como momento central de la actividad proyectual.”, Josep LLuis Mateo, in “Herzog y de Meuron”, Gustavo Gili, Barcelona, 1989.

[viii] Aldo Rossi é, justa mente, um dos autores centrais na repescagem da noção Baudeleriana das Correspondências: “I rapporti sono un cerchio non chiuso (…). Non nel purismo ma nella illimitata contaminatio delle cose, delle corrispondenze, ritorna il silenzio; il disegno puó forse suggerire e mentre si limita si amplia alia memoria, agli oggetti, aile ocasioni.”, in “Autobiografia Scientifica”, Pratiche Editrice, Parma, 1990.

[ix] “Podremos sustituir la pérdita de la tradición unicamente a traves de la complejidad conceptual de la obra arquitectónica a todos los niveles, pero nunca se logrará mediante la tecnologia ni con una actitud tendente a conservar imagenes arcaicas.”, Herzog & de Meuron em entrevista, in “Herzog y de Meuron”, Gustavo Gili, Barcelona, 1989.

[x] A iIustração inicial deste texto pode, exactamente, referenciar-se ao trabalho de Matta-Clark: “Gordon Matta-Clark used houses and building structures which were abandoned or about to be demolished, and revealed ‘hidden layers of socially concealed architectural and anthropological family meaning.'(…) Ultimately the determining factor for him was the degree to which his intervention could transform the structure into an act of communication.” Corinne Diserens, in “Gordon Matta-Clark”, in ‘Installation Art’, Thames & Hudson, Londres

[xi] Já a ilustração final pode aludir à auto-referência, prospectiva e porventura irónica, de Eduardo Souto Moura relativamente a uma dessas obras por vir.

[xii] “A inquietação do artista pela época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas antes a de um utópico que procura perceber em termos exactos o mundo novo, porque deseja esse mundo e quer já fazer parte dele. A vigilância do artista (…) é uma vigilância amorosa, uma vigilância de desejo.”, Roland Barthes, in “Caro Antonioni”, in “Michelangelo Antonioni”, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1985.

[xiii] “Nosotros no queremos perder nada de nuestro tiempo, talvez los hubo mejores, pero esto es el nuestro. No tenemos más que esta vida para vivir, en médio de esta guerra, talvez de esta revolución.”, Jean-Paul Sartre.

[xiv] “L’architettura è la volontá di una epoca tradotta in spazio: vivente, mutevole, nuovo. Né ieri, né domani, ma soltanto oggi può prendere forma.”, Mies Van der Rohe, 1923

[xv] Uma outra referencia enciclopédica diz das Correspondências: “Designa em poética a analogia entre os seres. Consciente da unidade radical que vincula entre si todos os seres, a poesia tenta dar expressão visível a realidade invisível esforçando-se por decifrar esta espécie de hieróglifos universais impressos na Natureza.”

[xvi] “Me avviicinavo all’idea di analogia che era per me dapprima un campo di probabllità, di definizioni che se avvicinavano alla cosa rimandandola I’una all’altra; si incrociavano come gli scambi dei treni.”, Aldo Rossi, in “Autobiografia Scientifica”, Pratiche Editrice, Parma, 1990.

[xvii] “Je suis venu a cette conviction instinctive que I’archltectonique et les autres arts plastiques ont une origine comune (…) basée (…) sur les acquls et connaissances accumulés dans notre subconscient.”, Alvar Aalto, in “L’oeuvre aux écrits”, Centre Georges Pompidou, Paris, 1989.

[xviii] É Ignasi Sola-Morales que, referindo-se ao minimalismo e àquela arquitectura que no limite procura os “territórios jamais cultivados”, sugere este termo: “Nella crisi contemporanea I’architettura del limite è il più fragile e il più sicuro dei percorsi per tornare ad incontrare l’esperienza estetica profonda, cioè tecnica e poetica, téchnè e poesis, dell’architettura”, in “Differenza e limite: individualismo nell’architettura contemporanea”, in revista Domus, Milão.

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