Publicado in LAMag, #5, Julho/Agosto/Setembro, Lisboa
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Alguns lugares têm o raro privilégio de receber a visita de uns objectos estranhos e efabulatórios que, seguramente, não fazem parte do mundo comum do nosso dia-a-dia.
Lisboa tem um desses objectos bizarros: uma gigantesca nave espacial que aterrou em Monsanto nos anos 70, logo foi abandonada e agora só ocasionalmente é revisitada em estranhas festas rituais semi-ilegais. Na Croácia encontrei outro destes objectos. Deixado num pinhal junto à praia durante os anos 60, tinha sido convertido num hotel e, entretanto, jazia também desertado, curiosamente invisível aos olhos dos banhistas.
Pode dizer-se que colecciono estes OVNIS arquitectónicos. Anseio até visitar alguns que só conheço de fotografia – como aquela casa-disco-voador dos anos 50 que faz justa atracção nas colinas de Hollywood.
Ainda assim, a mais espectacular destas arquitecturas não imediatamente identificáveis encontrei-a no Rio de Janeiro. Como se já não bastasse a paisagem extra-terrestre da baía da cidade maravilhosa, a 2 de Setembro de 1996 aterra, em frente ao Rio, o mais belo e enigmático disco voador da história não oficial da arquitectura.
Felizmente, ao contrário desses outros objectos perturbadores e deixados ao abandono, este disco voador foi imediatamente tomado de assalto: foi transformado em museu de arte contemporânea e tornou-se num dos ícones da cultura brasileira actual.
Na verdade, só num continente em que a magia se confunde com a literatura e onde o misticismo se mistura com a inteligência do novo é que um disco destes poderia ser bem-vindo. Quer dizer, agora qualquer meteoro caído numa praça é calorosamente acolhido – e, ainda bem, que assim é: acredita-se de novo no poder criativo do acidente. E isto nem sequer é arquitectura, é antes biologia.
Mas há 10 anos, as coisas ainda não era bem assim. Há uma década atrás, arquitectura de excepção ainda era a excepção à regra. E a regra, quando não era apenas má, era bastante austera.
Mas mesmo no Brasil, mais dado às liberdades formais e informais, seria preciso magia para atrair objecto tão pouco identificável na constelação da arquitectura corrente. E a essa magia os brasileiros chamariam imediatamente de gostosa.
É claro que para ali conseguir fazer aterrar aquele disco voador foi necessária a participação de um dos maiores feiticeiros da arquitectura brasileira do século XX. Como já havia feito com outras formas improváveis e ainda assim tão típicas, só Niemeyer conseguiria elevar a categoria do disco arquitectónico não identificável a um novo patamar de elegância e delicadeza.
Já então com quase 90 anos, o mais famoso arquitecto brasileiro era também o único suficientemente visionário para convencer todos os envolvidos nesta aventura arquitectónica, para assim fazer aterrar tal objecto insólito num belvedere de Niterói face ao Rio. E porque de um belvedere se tratava, só Niemeyer tinha o arrojo de nos fazer olhar de novo a paisagem deslumbrante do Rio como se tivéssemos acabado de chegar ao planeta.
Como nos decks das naves espaciais dos filmes de ficção científica dos anos 50, podemos então deparar com a sensação invulgar de redescobrir a Terra a partir de um observatório que roda 360º sobre a água, a costa e a espessura da atmosfera envolvente.
Se este museu de Niemeyer é uma autêntica nave espacial – daquelas de nos transportar para o mundo imaginado dos filmes – é-o também porque o espaço fluído dos seus interiores evoca uma forma quase alienígena de pensar a arquitectura.
Abandonados os ângulos e os planos rectos numa qualquer civilização anterior, abandonada a distinção obrigatória entre chão, paredes e tectos, as curvas e as superfícies continuas de Niemeyer são, afinal, parte de um imaginário e um vocabulário paralelos e marginais da arquitectura moderna do século XX.
É a plasticidade e a fluidez espacial que fazem a diferença – como são estas qualidades do espaço que criam uma perfeita consonância com a sensualidade e o calor da cultura brasileira.
Ao contrário dos que professam o que as pessoas conhecem como a arquitectura das linhas direitas, Niemeyer é conhecido por sempre ter aproveitado a construção de formas orgânicas que a invenção do betão tornou mais possível.
É graças à qualidade plástica e estrutural do betão que esta nave espacial pode aterrar sobre um único pé que continua harmoniosamente as linhas aerodinâmicas do disco voador. E é deste modo, também, que se revela um feito de engenharia que permite a este disco voador não só aterrar com graça, mas também resistir com elegância ao peso de ventos e passageiros.
É no momento em que compreendemos essa síntese, que desejamos também que a matéria da arquitectura fosse mais vezes de fora deste mundo. Não porque gostamos de coisas estranhas, mas porque gostamos de coisas gostosas.
Como bem sabemos e lamentamos, o betão passou a ser o sinónimo da construção desenfreada de edifícios feios, banais e demasiado terrestres. Assim, de vez em quando, é bom lembrar que, nas mãos certas – e como, felizmente, tantas vezes aconteceu na história da arquitectura brasileira – o betão também pode servir para libertar a imaginação e os sentidos.
Afinal, o betão pode até servir para nos devolver ao mundo fantástico da ficção científica da nossa infância.
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