De que falamos quando falamos de mediatização da arquitectura?

Introdução ao livro Arquitectura em Público, Dafne, Porto 2011

No momento em que comecei a escrever esta introdução, três anos após a conclusão da tese de doutoramento que esteve na base do presente livro, o panorama mediático português foi abalado por alguns dos acontecimentos mais dramáticos da sua existência pós-ditadura. Por entre a pressão esmagadora da realidade económica – da crise generalizada das publicações em papel face à emergência da internet e do online até à entrega desesperada e estapafúrdia a práticas populistas – o cenário mediático português atingiu um pico irreversível.

Perante este estado das coisas, ganha pertinência perguntar porque é que se escreve um livro sobre a difusão de massas de uma produção cultural como a arquitectura. A resposta é múltipla, mas a única que subitamente parece interessar é que a aparição meteórica da arquitectura no contexto mediático generalista português foi, ela própria, um sinal da volatilidade e do funcionamento dos nossos media de massa.

A afirmação da arquitectura portuguesa através da mediatização revelou-se uma boa metáfora para explicar como os media de massa acolhem, digerem, ampliam, apropriam e finalmente deitam fora qualquer assunto que sirva para captar a atenção e o share. Assim, fala-se neste livro sobre o modo como o campo arquitectónico adquiriu pujança nas páginas de um diário de referência – o jornal Público –, como a arquitectura se reflectiu e construiu na esfera pública e como a sua produção acabou por ser escrutinada pela opinião publicada. Mas podia ter-se falado de arte, culinária, futebol ou qualquer outra coisa.

Num momento em que o fenómeno da mediatização afecta as mais diversas esferas – desde o âmbito da vida quotidiana às expressões das mais variadas áreas de conhecimento – considerou-se que havia lugar a mais uma leitura da difusão da arquitectura no âmbito dos media de massa. Existindo já estudos académicos que se dedicaram a analisar as relações entre a arquitectura e os media – de Beatriz Colomina a Kesten Rattenbury–[i] existia ainda potencial para estabelecer uma abordagem e uma perspectiva inédita sobre o assunto. O caso português requeria, naturalmente, a sua própria análise. Porém, pressentiu-se que, da especificidade desse caso, também podiam emergir conclusões mais abrangentes para a apreciação dos fenómenos contemporâneos da “transmissão” da arquitectura.

De igual modo, como a relevância dos fenómenos da mediação e da recepção é hoje fundamental na análise de qualquer produção cultural, pensou-se que a mediatização generalista da arquitectura oferecia um instrumento único para proceder a uma análise crítica do campo arquitectónico e da construção da respectiva imagem pública.

Para atingir estes objectivos, decidiu-se afunilar um campo virtualmente inesgotável de propagação mediática e concentrar a atenção na aparição da arquitectura num meio da imprensa generalista que, ao longo do período escolhido para o estudo, pudesse oferecesse uma panorâmica relevante. A partir daí, poder-se-iam extrapolar algumas conclusões sobre os efeitos e repercussões da expansão mediática da arquitectura no contexto português.

A escolha do Público foi, neste sentido, ditada pela proeminência que este meio generalista deteve na projecção da arquitectura na esfera pública local. Este jornal ilustrou particularmente bem como o campo arquitectónico encontrou na mediatização generalista uma arena privilegiada para construir uma visibilidade pública expandida. A arquitectura encontrou neste jornal  um cenário ideal para revelar as movimentações e as posições do campo e, até, um fórum exemplar para a divulgação, debate e reflexividade da respectiva produção. Através da comparação qualitativa dos conteúdos arquitectónicos aparecidos nos primeiros anos de publicação do Público com os artigos que contiveram referências a esse respeito no período compreendido entre 1998 e 2005, foi possível compreender como o assunto arquitectura ganhou relevo e ditou uma enorme expansão da presença mediática do campo arquitectónico na esfera pública portuguesa.

Com estes dados pôde-se estruturar uma perspectiva que, antes de mais, oferecia uma imagem do fenómeno ligeiramente diferente dos cenários catastrofistas que imperam nas abordagens da mediatização – bem como na típica enumeração das consequências da difusão de massas para os campos da produção cultural, como aqui se considera ser a arquitectura. É certo que existem aspectos da teoria da informação que nos indicam que temos que lidar com o imperativo de um menor denominador comum ou com as repercussões dos ciclos de novidade e obsolescência dos conteúdos. É certo que o confronto da arquitectura com a autonomia do campo mediático obriga a rever o posicionamento da sua produção à luz de uma autonomia relativa. No entanto, concluiu-se que a mediatização generalista, por oposição às limitações da difusão especializada, podia deter um efeito benéfico sobre a projecção das identidades e das legitimações que traduziam a adequação da cultura arquitectónica a uma sociedade em mudança.

A partir das análises realizadas retirou-se que, apesar dos efeitos perniciosos que os media de massas podem ter no âmbito da chamada sociedade de consumo – ou da sociedade do espectáculo ou da afluência –, a mediatização de massas contribuiu para a projecção e para a consolidação social do campo cultural da arquitectura a nível global e local. Estabeleceu-se inclusivamente que, entre as suas várias fases ou estádios possíveis, o amadurecimento da mediatização generalista da arquitectura levou a que o campo arquitectónico – e, dentro deste, o discurso arquitectónico – avançasse para níveis mais complexos e consequentes de transmissão e partilha dos seus conteúdos junto do público.

Ao permitir a difusão da informação relativa aos modos de funcionamento, aos saberes e aos princípios disciplinares da arquitectura junto de uma audiência alargada, foi a mediatização generalista – e não qualquer outra forma de mediação, fosse ela especializada ou generalizada – que acabou por garantir que a arquitectura tenha preservado uma autonomia cultural relativa mas essencial. Registou-se, nomeadamente, que os interesses existentes nos sectores mais restritos da produção arquitectónica – aqueles que sempre defenderam uma noção mais exigente de “qualidade arquitectónica” – acabaram por coincidir com o sentido da difusão de massas da arquitectura.

Em última instância, quando se descobrem os benefícios que a difusão generalizada trouxe à arquitectura, pode-se até questionar o que, durante um longo período, foi o investimento quase exclusivo da cultura arquitectónica nos media especializados. O campo arquitectónico assumiu uma legitimação epistemológica da sua actividade que, afinal, se baseava na exclusão contraditória do mesmo senso comum com o qual a prática da arquitectura se tinha que relacionar pela natureza da sua imposição no mundo construído.

Tais conclusões sugeriam que – como acontece na mediatização generalista – se deviam ter aberto ainda mais as portas da difusão arquitectónica a uma recepção e a uma receptividade efectivas no domínio do quotidiano. Com a presença mediática da arquitectura estabelecia-se, ademais, que muitos dos efeitos e impactos positivos da mediatização generalista podiam ser conscientemente utilizados pelos actores do campo arquitectónico. Perante o estado de graça da presença da arquitectura na arena mediática, os intervenientes do campo, como outros actores sociais, podiam apropriar-se da presença da arquitectura nos media. E frequentemente fizeram-no, não apenas para divulgarem e veicularem a produção própria, mas também para promoverem um reposicionamento activo e crítico da prática arquitectónica perante as condições globais e locais da modernidade tardia.

Neste sentido, e atendendo às especificidades do medium aqui analisado, desejou-se que a pesquisa encetada servisse para mais do que interpretar e dispor uma informação historicamente interessante. A reflexão proposta serviu também para estabelecer uma leitura do campo arquitectónico que fugisse aos cânones habituais de uma produção da história que habitualmente parte da observação interna e de um debate disciplinar isolado de estilos, correntes, autores ou obras individuais.

Nas entrelinhas da expansão mediática aqui narrada fica uma história assumidamente parcial e uma crítica cultural da arquitectura portuguesa entre 1990 e 2005. Nas estórias picantes aqui revisitadas, os 15 anos focados acabaram por se revelar como o período áureo da difusão da arquitectura na sociedade portuguesa, paradoxalmente ainda mais do que nos anos que se seguiram. Afinal, mais do que em qualquer outro meio e independentemente de qualquer razão circunstancial, o jornal Público deu as boas vindas a uma prática que, de praticamente desconhecida e ignorada pela maioria da sociedade, rapidamente – e pelo menos do ponto de vista mediático – passou a ser numa das grandes exportações da cultura portuguesa contemporânea.

Apesar de existir uma vaga impressão geral em contrário, a leitura crítica da mediatização generalizada da arquitectura consegue oferecer um retrato da arquitectura mais amplo do que um somatório de tendências ou de produtos exclusivamente adaptados aos gostos dos seus criadores e consumidores. Com as suas discrepâncias da realidade percepcionada pelos seus actores, esta leitura oferece o retrato fiel de uma produção cultural como ela é efectivamente vista pelo público. Isto é, dá-nos o instantâneo de como a arquitectura fica plasmada no imaginário mais vasto de uma cultura.

Pedro Gadanho, Lisboa, Dezembro de 2010


[i] Da primeira autora, ver a obra de referência para este tipo de análise: Beatriz COLOMINA, Privacy and Publicity, Modern Architecture as Mass Media, Cambridge, MIT Press, 1994; mas também Beatriz COLOMINA, Architectureproduction, New York, Princeton Architectural Press, 1988. Da segunda, ver Kester RATTENBURY (ed.), This is Not Architecture – Media Constructions, London, Routledge, 2002.

 

 

One response to “De que falamos quando falamos de mediatização da arquitectura?

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