Três Parábolas Mediáticas

Três Parábolas Mediáticas na Arquitectura Portuguesa Recente


Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a arquitectura é hoje abundantemente difundida através de media de massa que abrangem as várias formas da imprensa, a televisão, a rádio, a internet e até as variadas mediascapes das nossas cidades. A isto chamo não só uma mediatização generalista, mas também uma mediatização generalizada.

Os meios especializados perderam terreno na definição da disciplina ou generalizaram-se, eles mesmos, para aceder a um mercado mais sustentável. ….. E os meios generalistas assumiram o locus da consagração e da legitimação arquitectónica, produzindo a nova imagem pública da arquitectura e o seu novo sistema de valores.

A importância retumbante da mediatização generalista da arquitectura faz, deste modo, com que a sua análise forneça uma história relevante do campo arquitectónico. O arquivo dos media generalistas oferece uma narrativa que, nas suas entrelinhas, produz uma desconstrução imediata da imagem que o campo arquitectónico tem ou gosta de mostrar de si próprio.

Como sugeria Sigmund Kracauer, a leitura dos mais simples fenómenos de superfície – como os aparentemente inerentes a uma mediatização generalista – permite extrair uma informação inconsciente que tem a vantagem de ser relativamente independente dos sistemas institucionais de controle e gate-keeping de uma disciplina autónoma como a arquitectura. Ler o campo arquitectónico a partir das suas mediatizações generalistas dá-nos a perceber como é que, afinal, a visibilidade mediática dos arquitectos acaba por afectar a arquitectura efectivamente produzida.

Esta foi a extrapolação essencial da minha pesquisa sobre o assunto. Entre as conclusões a que cheguei retira-se que Portugal, apesar do seu carácter periférico e aparentemente inócuo, se tornou num bom exemplo do fenómeno da mediatização da arquitectura tal como ele ocorre actualmente.

Assim, três parábolas extraídas dos media portugueses permitem-nos analisar algumas repercussões paradoxais da actual difusão mediática do campo arquitectónico.

  1. Ausência e Presença

Mesmo num ambiente de mediatização crescente da arquitectura como o que acontece no caso português, a presença da cultura arquitectónica nas representações mediadas da cidade e do território revela-se, por vezes, ainda paradoxalmente invisível.

Em 2005, um artigo de um conhecido opinion-maker português intitulado “Portugal a voo de pássaro” apresenta ainda um retrato impiedoso de caos urbanístico que grassa no país.

Ao longo de uma descrição brutal da “fealdade” da paisagem portuguesa contemporânea, nem uma só vez se refere o contributo estético que o campo arquitectónico poderia ter tido – ou poderia vir a ter – para se modificar esta situação.

Sendo o tema o desordenamento do território, num momento histórico em que a arquitectura vive uma apreciação eufórica, a ausência de referência à disciplina e à sua função social e estética torna-se gritante

Como aponta José Pacheco Pereira, houve melhorias, “há mais escolas, mais bibliotecas, mais equipamentos culturais, nalguns casos gigantes e subutilizados, mais hospitais, mais serviços a nível local e regional, melhor comércio de massas, mais acesso a determinados bens e mais dinheiro para os adquirir.”  Mas para o opinion-maker, isto é apenas “uma gota de água no caos, na fealdade, que cresce exponencialmente.”

Como se podem compreender as implicações desta afirmação para uma classe arquitectónica que, por esta altura, é mais visível que a classe dos médicos ou dos engenheiros?

Perante a hipótese pouco plausível de que o colunista se tenha esquecido de que existe uma classe profissional e uma cultura especializada que poderiam dar um contributo para evitar ou travar o crescimento exponencial da fealdade, podem-se arriscar duas hipóteses de interpretação da sua mensagem.

Uma possibilidade seria que o opinion-maker avisa que, de facto, a visibilidade do campo arquitectónico – e logo a sua autoridade cultural – deveriam ser usadas para algo mais do que para  providenciar um “cenário mediático” e uma “consagração” que se limitam a afagar o ego colectivo.

Outra possibilidade, seria, mais bem, que o colunista deixava antes um recado a uma classe profissional que, não só adquiriu visibilidade e projecção social e simbólica, mas estava também prestes a ampliar as suas responsabilidades efectivas – e o seu campo de actuação legal – perante a realidade do território português.

O problema que aqui se coloca é, então, como é que, perante a sua presença crescente no espaço púbico mediado, o campo arquitectónico se posiciona perante a civitas? Como assume as suas responsabilidades?

A resposta natural seria que o campo arquitectónico que detém visibilidade mediática deveria passar do seu regime corrente de auto-celebração e auto-consagração à promoção da presença dos seus participantes nos mais diversos contextos de actuação – mais que simplesmente os empurrar para a emulação do star-system ou para a simples imigração.

Sob o impulso da mediatização generalista, arquitectura deve passar de evento excepcional a evento do quotidiano.

Essa seria uma forma feliz de resolver o outro paradoxo implícito nesta pequena história.

Um país inteiro prolonga um estado de fealdade do seu território, enquanto 90% dos seus arquitectos recém-formados – atraídos a essa área de produção cultural pela visibilidade pública da arquitectura e pela consagração dos seus protagonistas – sentem que não tem condições para um exercício regular e condigno da sua profissão.

O que vai mal neste país dotado de uma arquitectura tão internacionalmente reconhecida e aclamada?

  1. Visibilidade e uniformização

Em 1998, um importante prémio cultural português – o Prémio Pessoa, lançado por um semanário de referência e uma estação de televisão privada – é, pela primeira vez atribuído ao campo da arquitectura e, nomeadamente, a uma das suas estrelas em ascensão, Eduardo Souto Moura.

Um editorial especial do director do diário O Público, assinala “a consagração da arquitectura.”

A atribuição deste prémio à área da arquitectura traduz o remate simbólico da progressão da presença da arquitectura na sociedade portuguesa até ao pico da Expo 98.

Para José Manuel Fernandes, fecha-se então um “círculo afectivo que se abriu com o deslumbramento popular que representou a arquitectura sem concessões da Expo e que levou muitos portugueses a olhar de outra maneira para alguns dos seus criadores.”

Os media generalistas de referência revelam-se, assim, predispostos a acolher a arquitectura e a aí encontrar novos heróis e figuras de referência. Nesse âmbito, os prémios revelam-se como os mais interessantes mecanismos para caucionar publicamente uma procura de heróis que encarnam o papel de novos ídolos do consumo.

Numa fase anterior, a visibilidade e o consumo da arquitectura eram primordialmente garantidos por outros mecanismos.

Os eventos organizados em torno da cultura arquitectónica – as exposições, as conferências, os debates, os seminários – continuarão, é certo, a revelar-se como mecanismos que, ao mesmo tempo, afectam o curso interno da disciplina e garantem uma grande visibilidade mediática à arquitectura.

Esta simultaneidade foi cedo percebida e, de facto, no cenário arquitectónico português, o valor expositivo destes eventos depressa integra a aposta clara na visibilidade mediática como impulso para a transformação do campo e das suas tendências. Eu próprio contribuí para esta situação com uma série de exposições – desde as mostras Space Invaders e Post-Rotterdam, até ao ciclo Influx, à representação nacional na Bienal de Veneza de 2004 e ao call-for-concepts Lisbon Car Silos – todos elas realizadas com o intuito de injectar o campo com informação sobre novos protagonistas da cena nacional e internacional e, simultaneamente, todas elas dotadas com o objectivo de granjear novas audiências para a cultura arquitectónica.

Uma vez que este tipo de eventos oferece um assunto e uma topicalidade facilmente compreensíveis no âmbito do sistema do consumo cultural mediático, eles continuam a desempenhar um papel essencial no transporte da arquitectura e das suas transformações para a esfera pública.

Existem, depois, naturalmente, outros factores que permitem o incremento da visibilidade da arquitectura.

Tal como os prémios aqui inicialmente referidos, também a publicidade, a promoção institucional e outros mecanismos conscientes de produção de visibilidade permitem alargar e intensificar a presença mediática da arquitectura.

Porém, e por oposição a estes mecanismos de visibilidade que ainda se encontram sob controle da disciplina, os formatos de visibilidade arquitectónica progressivamente mais presentes no espectro mediático advirão – como se pressente no início desta história – do protagonismo social e cultural dos representantes consagrados do campo.

À imagem da lógica do sistema mediático, a celebridade transforma-se no principal motor de visibilidade do campo arquitectónico. A relevância e o reconhecimento dos protagonistas revelam-se particularmente adequados à natureza intrínseca da reprodução mediática.

A reprodução mediática vive do reconhecimento imediato dos seus assuntos e esse reconhecimento advém, por sua vez, da identificação dos protagonistas das narrativas e histórias que os media veiculam.

Quando a arquitectura se aproxima dos media de massa passa-se dos mecanismos tradicionais de divulgação da produção e da obra, para a construção de narrativas personalizadas fundadas sobre figuras e protagonistas relevantes do campo arquitectónico.

A emergência do star-system internacional provém, precisamente, do recrudescimento desta lógica à medida que a arquitectura se torna assunto privilegiado dos media de massa. Como os media de massa necessitam de figuras relevantes, identificáveis, notáveis e propensas à criação de celebridade, o campo arquitectónico adapta-se-lhe com docilidade e recria-se enquanto sistema de estrelato que é compreensível pela linguagem do consumo mediático mais abrangente.

A arquitectura começa a ser privilegiadamente definida como uma produção e consumo cultural de ícones e autores.

Neste sentido, dentro do cenário português, também surgiram figuras que, em diferentes tempos e medidas, satisfizeram ou satisfazem a voracidade da reprodução mediática.

Tomás Taveira foi o arquitecto que, nos anos 80, corresponde à fase de afirmação da mediatização da arquitectura e, como tal, representa o caso clássico de uma figura que ascende, vive e morre pela lógica dos media de massa.

Siza Vieira corresponde à fase de maturação. A sua projecção mediática corresponde à revelação e apropriação de uma ampla consagração disciplinar e ao reconhecimento dos chamados heróis da produção.

E Souto Moura responde à fase estabelecida da relação entre arquitectura e media de massa. Neste caso, o arquitecto serve a manutenção da visibilidade e do ciclo de reprodução mediática que garantem a sobrevivência do assunto arquitectura e das respectivas audiências. Ele surge, então, como expressão da necessidade crescente de ídolos de consumo e afirma-se como o protagonista ideal da mediatização generalista da arquitectura.

Neste cenário, onde antes a promoção de eventos culturais ainda apelava a uma certa diversidade de conteúdos e de formas de representação do campo arquitectónico, os fenómenos da celebridade e do seu poder referencial reproduzirão, mais frequentemente, uma tendência para a uniformização que é típica dos media e da cultura de massas.

A existência de mecanismos de produção de visibilidade comuns ao campo arquitectónico e ao campo mediático significa, afinal, que aumentam as probabilidades de a arquitectura ser encarada – e representada – a partir da lógica mediática e não segundo os princípios da sua própria autonomia.

Daí, o campo arquitectónico pode começar a exibir características típicas da reprodução de massas.

De resto, e como aconteceu no caso português, esse facto pode também ser reforçado pela coincidência entre os interesses do campo mediático e a manutenção do status quo do campo arquitectónico ou respectivo sector restrito.

A coincidência histórica entre a consagração interna do campo arquitectónico e a consagração externa proporcionada pelo campo mediático transforma-se numa das repercussões essenciais da mediatização generalista. Neste caso, aliás, não se ecoa senão um efeito mais vasto, perceptível na reprodução mediática do star-system internacional.

No entanto, e ao contrário do que acontece no cenário internacional, aquilo que hoje é visível da produção arquitectónica portuguesa em termos mediáticos – especializados ou generalistas – sugere uma uniformização formal influenciada pela reprodução exaustiva de modelos de um sub-campo restrito que foi progressivamente identificado com o universo total da arquitectura portuguesa.

O efeito de consagração mediática que se gerou em torno de alguns poucos protagonistas contribuiu para que, em 15 anos, a arquitectura portuguesa perdesse grande parte da sua biodiversidade.

Neste sentido, a uniformização deriva não só da natureza do campo mediático, mas também das características do chamado sistema de consumo e, até, circunstancialmente, da natureza do campo arquitectónico em questão.

Com uma pequena dimensão e grande homogeneidade, mercado económico e simbólico limitado, ascendência absoluta de um número reduzido de protagonistas muito fortes e visíveis e até o deficit democrático de uma cultura ainda em afirmação, o campo arquitectónico português passou a reproduzir-se exclusivamente à imagem de uma linguagem arquitectónica de audiência garantida.

A consagração de ídolos de consumo e a reprodução do reconhecível evocam o sistema do consumo e produzem uma uniformização em direcção ao menor denominador comum daquilo que é mais consumível e identificável.

Neste sentido, alguns considerarão até que a homogeneidade não corresponde senão a uma identidade coesa e desejável. As tendências negativas normalmente alertadas na mediatização – como a superficialização dos conteúdos ou a novidade pela novidade – traduziram-se antes, no caso português, numa consolidação da imagem e no aprofundamento da afirmação da chamada arquitectura de qualidade e de autor, estabelecidas como referências estáveis para uma fácil digestão.

Porém, a diferença desapareceu do mapa, à excepção – apesar de tudo promissora! – da produção de alguns jovens arquitectos influenciados pelo contexto europeu mais abrangente – naturalmente, não sem se evidenciarem as dificuldades em afirmar qualquer ruptura com a homogeneidade de estilo prevalecente.

No meio disto tudo parece esquecer-se, que, como acontece em qualquer sistema ecológico, a sobrevivência depende do encontro entre a estabilidade identitária e a biodiversidade.

  1. Em direcção a um consumo conspícuo

A arquitectura atingiu em Portugal um novo – e talvez conclusivo – patamar de generalização quando surgiu como objecto de um concurso televisivo direccionado a uma audiência popular.

Quando o apresentador de um programa do principal canal de televisão nacional pergunta ao concorrente quem foi o autor de um dos estádios construídos para o Euro 2004, percebe-se que a cultura arquitectónica atingiu finalmente o estatuto de cultura geral.

Que, ademais, entre as possibilidades de resposta múltipla – Tomás Taveira, Manuel Salgado, Siza Vieira –o concorrente acerte efectivamente no autor do projecto, significa que, afinal, até há um domínio relativo dessa cultura por parte da audiência generalista.

Longe vai o tempo dos idos anos 80 em que o mesmo canal televisivo introduzia, numa telenovela de produção nacional e sob forma considerada anedótica, a figura social desconhecida do arquitecto.

O episódio mais recente só é revelador, no entanto, se se cruzar com outros aspectos da construção mediática da arquitectura que a ofereceram à estratificação corrente do sistema do consumo.

Nesta entrada no mundo prosaico e mediatizado do futebol, encerra-se, afinal, uma lógica de aproximação ao quotidiano e ao consumo que já se tinha feito sentir na orientação do evento do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura.

No mesmo ano, de resto, assiste-se ao efeito retumbante da presença do star-ystem internacional na paisagem quotidiana portuguesa quando as televisões montam e emitem em directo os seus telejornais contra o cenário de fundo da inauguração do maior legado do Porto 2001: a Casa da Música de Rem Koolhaas.

Contra a maré de polémicas envolventes, a arquitectura de Koolhaas para a Casa da Música “impôs-se no imaginário.” E, assim, também neste caso a arquitectura é agora cultura geral e está definitivamente instalada no quotidiano.

Todavia, esse já não é sequer o facto de maior relevo. O que mais interesse poderá suscitar aqui é, antes, o carácter definitivamente generalizado da presença da arquitectura como pano de fundo da realidade mediática. A arquitectura excepcional banaliza-se sob a forma de consumo de massas.

Claro que o impacto do edifício justificava, por si só, o empenho e a presença do campo mediático.

Porém, agora sente-se plenamente o efeito cruzado e amplificador de uma mediatização da arquitectura que ocorre em várias frentes. Os directos da TV são acompanhados por capas e edições especiais da imprensa de referência, entrevistas de rádio, presenças nas revistas de moda, spots publicitários e repercussões variadas nos circuitos mais especializados.

A arquitectura culmina, no meio de massas por excelência que é a televisão, uma tendência para se oferecer como ícone de consumo quotidiano que, imediatamente antes, era já evidenciada na imprensa cultural e de estilo de vida.

O surgimento da revista britânica Wallpaper em meados dos anos 90, por exemplo, assinalou a confluência e consolidação de uma progressão difusa pelo qual a arquitectura passou a ser alvo de um consumo associado à criação de estilos de vida e de identidades.

Como nunca antes acontecera com uma revista não especializadae que, de facto, atinge proporções de um  meio de massas generalista e internacional – a Wallpaper coloca a arquitectura e o design ao nível da moda, isto é, dá à arquitectura um dos papéis de protagonista principal entre as produções culturais que permitem arranjar “as coisas que estão à nossa volta.”

Em consequência, a arquitectura adquire o estatuto efémero dos fenómenos de moda que, no território do consumo media, concorrem com outras produções culturais de valor semelhante. Sublinha-se o papel da arquitectura na construção de um certo hedonismo, mas também de uma certa ideia de qualidade de vida.

A projecção social e cultural da arquitectura destaca-se, deste modo, das obras e dos protagonistas tradicionalmente legitimados pelo campo arquitectónico e dá-se, agora, a outro tipo de apropriações simbólicas e identitárias. A arquitectura é consumida como mais-valia que tanto pode ser veiculada por media artísticos e de vanguarda, como por meios de comunicação destinados aos sectores políticos e económicos.

Isto pode parecer distante de uma realidade como a portuguesa, mas a verdade é que esta condição irá afectar profundamente a recepção mediática da produção arquitectónica nacional mais restrita.

De facto, a visibilidade crescente da arquitectura num cenário mediático alargado e transversal não é, em Portugal, muito diferente da de outros países onde esta produção cultural detém reconhecimento social ou protagonistas proeminentes.

Se o crescimento do star-system arquitectónico internacional foi, nas últimas duas décadas, co-dependente da expansão de círculos mediáticos mais restritos para meios cada vez mais alargados, então a presença de um membro desse sistema em Portugal, Siza Vieira, foi suficiente para aí criar um microcosmos mediático do qual é possível extrair leis bastante gerais.

De facto, se a década de 80 é de transição no surgimento da arquitectura para uma esfera pública alargada,

a década de 90 será aqui, como em alguns postos avançados da prática arquitectónica ocidental, de afirmação e consolidação da projecção da arquitectura no território social e mental dos portugueses.

Dentro das especificidades do caso português, esta afirmação é também interdependente do crescimento económico e cultural impulsionado pela entrada do país no espaço europeu, mas passa crucialmente pela descoberta dessa figura legitimada por um sistema de estrelato arquitectónico internacional e, de seguida, pela confluência progressiva entre os interesses do campo mediático e os valores assumidos pelo campo restrito da arquitectura portuguesa.

Não só a mediatização generalista da arquitectura incrementa em torno de valores partilhados e consensuais, mas, por reflexo desta presença, assiste-se também ao alargamento efectivo do campo arquitectónico e seus participantes.

A mediatização generalista é favorecida por condições favoráveis; as ondas de repercussão desta mediatização geram uma aura positiva para o campo profissional; esta aura origina atracção e traduz-se no crescimento efectivo dos participantes do campo; este aumento de participantes tem correspondência na criação de novas audiências para a cultura arquitectónica – quer de forma directa, quer por via das e respectivas redes de interacção social dos novos participantes – e, assim, ocorre de novo favorecimento da mediatização do assunto.

Cria-se um ciclo virtuoso que determina que a arquitectura se torne um assunto apetecível, um assunto que cresce transversalmente no espectro mediático, social e económico e, consequentemente, se assuma como um consumo cultural que adquire várias facetas.

Que a arquitectura surja como assunto para diversos sectores mediáticos significa também que a arquitectura se presta agora a diferentes formas de consumo.

A arquitectura é consumida como cultura, como mais-valia económica, como símbolo identitário, como ostentação, como locacional value, como património, como touristic asset, como signo de distinção social.

Com o seu apelo a um consumo simbólico imediato e com o conceito de património a aproximar-se vertiginosamente do presente, a melhor produção contemporânea da arquitectura portuguesa passou a adquirir um estatuto patrimonial instantâneo, com a natural classificação dos edifícios de Siza Vieira, mas ainda mais surpreendentemente, com o Estádio de Braga de Souto Moura a ser declarado national heritage menos de um ano depois da sua inauguração. Fale-se de história instantânea!

Noutros casos, através dos media acentua-se o valor de commodity da arquitectura no âmbito turístico e amplia-se a centralidade da arquitectura contemporânea nas narrativas sobre o consumo de destinos exóticos ou históricos.

Mas as novas facetas públicas do consumo da arquitectura não se ficam por aqui.

A arquitectura afirma-se como um capital cultural e, logo, predisponibiliza-se para tipos diversos de apropriações consoante os sectores da sociedade que se apercebem da possibilidade de converter esse capital para os seus próprios interesses e necessidades.

Quer se trate do sector político, quer económico; quer se tratem de apropriações individuais ou colectivas no sentido da construção da identidade e da constituição de estilos de vida, a arquitectura avança rapidamente para o domínio do consumo conspícuo antes reservado aos bens móveis de luxo.

E onde, de facto, até há bem poucos anos a utilização dos recursos simbólicos providenciados pela arquitectura era reservado àqueles que detinham um poderes político ou económico expressivo, com a mediatização generalista a apropriação alargada da cultura arquitectónica torna-se subitamente alcançável.

Entre a clara utilização económica ou o simples aproveitamento simbólico do reconhecimento que a autoria arquitectónica pode trazer, os agentes sociais promovem agora a apropriação da arquitectura com a conivência explícita e imprescindível da lógica da reprodução mediática e dos próprios arquitectos.

Em Portugal, temos assim casos amplamente mediatizados como o da urbanização Bom Sucesso, em Óbidos, onde a apropriação dos maiores autores do campo arquitectónico português se traduz, afinal, numa das maiores operações de sempre de transformação da paisagem portuguesa protegida em urbanização turística de luxo.

Esta é, de resto, a nova forma privilegiada de ranking dos arquitectos nacionais, com os autores de maior renome e celebridade a fornecer, na pura lógica da economia cultural, as habitações mais caras e as disponíveis em menor número.

A arquitectura nacional encontrou aqui a sua reserva natural: um imenso campo de golfe isolado da fealdade da restante paisagem portuguesa onde, finalmente, a arquitectura de qualidade e de autor pode, como num safari, ser observada e consumida num estado de graça de relativa autonomia.

Aguardam-se os teams de televisão e os directos ao vivo na cerimónia de inauguração.

O presente texto constitui uma versão modificada de três excertos da tese de dissertação defendida na FAUP em 2007 com o título “Arquitectura e Mediatização Generalista 1990-2005.”

O texto foi também publicado em versão inglesa no European Architecture Yearbook, A10, Amsterdam, 2007, e na revista Dédalo #06, Porto, 2009.

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