Bem-Vindos ao Futuro 2.0 (Utopia vs. Distopia)

Em jeito de continuação do post anterior, e em modo de boas-vindas a 2014, tenho-me lembrado com alguma regularidade da entrevista que fiz a Saskia Sassen no âmbito do projecto #unevengrowth.

Na entrevista, a socióloga holandesa sediada na Columbia University revisita uma dicotomia que parece particularmente apropriada para pensar o porvir das cidades globais: a distinção assaz tópica entre uma visão utópica e uma perspectiva distópica do futuro.

S Sassen interviewSaskia Sassen on Utopia vs. Dystopia: ver 7’12”.

Como sugere Sassen, há uma visão utópica que acredita que, perante uma crise grave, todos se unirão e a criatividade emergirá para superar as divisões sociais existentes nas cidades de hoje. Do outro lado, porém, há a possibilidade distópica de que a desigualdade corrente traduza, de facto, “a absoluta desconsideração” de uma minoria privilegiada por “qualquer noção de um projecto colectivo.”

Um dos factoides interessantes com que deparei na minha chegada aos Estados Unidos foi justamente que o adjectivo “distópico,” antes reservado a novelas de ficção científica relativamente obscuras, é agora banal e corrente – tanto no discurso académico, como na prosa diária de jornais respeitáveis.

A dialéctica emergente da utopia vs. distopia – que também se pode traduzir na oposição optimismo/pessimismo – veio-me de novo à memória ao ler “Sillicon Chasm,” um artigo perturbador sobre as ilusões da igualdade de oportunidades – essa noção que antigamente informava o sonho americano.

Enquanto, por aqui, uma demência conservadora estarrecedora continua a tentar convencer toda a gente dos benefícios da economia trickle-down – a ideia delirante de que se houver uns quantos bilionários a sua riqueza  vai pingar magicamente para todos à sua volta – o texto do Weekly Standard mostra com números e estudos que, mesmo no último reduto da cultura empresarial libertária, a desigualdade só continua a aumentar.

Basicamente, a mensagem é agora: “Habituem-se!!”*

Enterrada a quimera de uma classe média minimamente afluente, autores como o economista Tyler Cowen dizem-nos que não há como a resignação para nos ajudar a atravessar a grande estagnação que aí vem – a qual o professor universitário compara sem grandes problemas a uma nova Idade Média na qual… the Average is Over.

Soa distante? Soa a distopia? A única diferença é que agora os servos andam de metro, e em vez de religião têm televisão e lojas de 99 cêntimos. Onde a esperança antes se encontrava num acto de ƒé, hoje encontra-se num auto de consumo que se arrisca tornar fátuo.

De facto, nenhum economista explicou ainda como é que o consumo continuará a alimentar a economia quando o novo proletariado já não tiver margens para qualquer tipo de consumo conspícuo. O Japão aguentou-se durante a deflação? Talvez. Uns tempos. Mas atente-se no nível de vida que já se atingira por aí…

Como os políticos bombardeiam todos os dias, em Portugal o nível de vida vai ter que se resignar e adaptar à (baixa) produtividade local. Mas não se desespere. Ganhe-se conforto na ideia de que vai ser assim em todo o lado – mesmo nos lugares de alta produtividade.

Como se aponta no artigo referido, “85% da população, isto é, 267 milhões dos 315 milhões da América, terão sorte em encontrar empregos de nível MacDonalds ou em ‘amigalhar’ ganhos marginais freelance a realizar biscates a 25$ cada para os seus superiores via TaskRabbit.”

Com o aprisionamento de todos os aspectos da cultura ocidental pela lógica corporativa que assegura o sucesso dos 15% do topo – já que o dinheiro (mais que a mecanização) tomou o comando – recordei-me também que a leitura ideal para 2014 continua a ser The Year of the Flood de Margaret Atwood.

Mas, mesmo se não tivermos mais nada para fazer, não é preciso ir tão longe como ler um livro – que horror! – para perceber que as várias incarnações da perspectiva distópica estão a invadir a nossa cultura popular em várias frentes.

thething1958Image hacked from The Celluloid Highway

A indústria da cultura sempre teve o dom de popular o nosso subconsciente com os temas do dia – quer se trate dos aliens em vez dos comunistas dos anos 50, ou zombies em vez dos pobres de agora. E o momento corrente não é excepção.

De Hunger Games e Elysium até In Time – só para referir alguns blockbusters de Holllyood que já nem se dão ao trabalho de criar metáforas – abundam como nunca as antecipações de mundos que, sem qualquer catástrofe pelo meio, se encontram perfeitamente divididos em duas classes sociais antagónicas.

O problema da perspectiva distópica é que já não se pode perguntar: de que lado quero estar? Desaparecida a classe média em que muitos cresceram, e mesmo com o aparente advento da meritocracia – que, é bom notar, também tende para a exclusão –, a possibilidade da escolha está a desaparecer.

Como Saskia Sassen e muitos outros nos dizem, num mundo que, como Nova Iorque, é cada vez mais “first come, first served”, a velha ideia de “mobilidade social ascendente” também anda cada vez mais pelas ruas da amargura.

E, assim, por entre os pensamentos pessimistas que as distopias nos provocam em jeito de cautionary tale – pensamentos que podem ou não envolver o fim de civilizações desenvolvidas no pico do seu auge – resta saber onde encontrar algum optimismo.

Será que encontraremos soluções na aparente capacidade da tecnologia para ir resolvendo todos os problemas que se lhe deparam até à debandada final, tipo filme de crianças versão Wall-E?

Wall-E1-800x960Wall-E hacked from WallPapersUs (Pedrog Re-Edit)

Acreditemos que sim. De facto, sem esse optimismo, projectos como Uneven Growth, ou a ideia de que arquitectos ou designers ou outros podem endereçar estas questões, careceriam de qualquer tipo de sentido.

Para regressar às noticias que muito selectivamente leio de Portugal, onde não vejo soluções locais para os problemas económicos da grande estagnação é no recurso ao Conselho da Diáspora (de que, em jeito de disclaimer, faço parte), a “fixar arquitectos” (dos quais já descolei há tempos), ou, enfim, a acreditar no conto de fadas de que o “crescimento vem aí.”

De facto, dada a globalização vigente, em última instância não determinamos o nosso próprio crescimento –  simplesmente procuramos adaptar-nos ao que vai acontecendo à nossa volta. E a dita Diáspora também não vai ajudar porque, globalizada ou escorraçada, não faz mais que também ela tentar sobreviver.

Quanto a “fixar os arquitectos,” e sem desprimor pelo meu apreciado colega e recém-empossado Presidente da Ordem dos Arquitectos, não vejo mesmo como é que João Santa-Rita vai operar esse milagre.

Diversificação? Só se for no estrangeiro, como poderei pessoalmente afiançar. Investimento e empenho estatal na reabilitação das cidades com obrigatoriedade de emprego de arquitectos? Seria lógico e apetecível, mas, mesmo com vontade política, apenas se ainda houvesse dinheiro para isso…

Como diz o outro, o economista, mais vale que nos dediquemos a saborear a resignação de alugar uns quartinhos reabilitados no Airbnb.

Enquanto o turismo global dos 85% tiver pernas para andar, claro. Porque os 15%, ou os 5%, ou os 1%, obviamente dispensam essas coisas rascas.

3 responses to “Bem-Vindos ao Futuro 2.0 (Utopia vs. Distopia)

  1. Excelente texto, Pedro, e infelizmente oportuno, na mesma semana que, no The Guardian, se deu conta que os 85 zilionários em conjunto detêm mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. ‘Servos a andar de metro que alugam quartinhos no AirBnb’, hmm? Isso se estiverem na metade certa.

  2. roberto cremascoli

    Distopia utopia ao contrario, o mundo ao contrario.
    Estou a preparar a participação portuguesa na Trienal de Milão: A arte em tempo de crise (28.2 – 23.3 2014), Portugal, Itália, Grécia, Espanha ou melhor PIGS do mediterrâneo. Com Teolinda Gersão, José Barrias, José Adrião estamos a fazer tudo com nada! Pedro o teu texto veio mesmo a calhar enquanto estou a preparar o texto Ancora un filo, un’altro orizzonte. Outro dia alguém estava a comentar numa “lecture” de literatura que a utopia é como o fio do horizonte, nunca se chega lá! e a distopia?
    O contrario de nunca chegar ao fio do horizonte?
    Chegamos!
    Gostei do texto (o teu)

  3. Pingback: No Country for Young People | shrapnel contemporary

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